quarta-feira, 13 de junho de 2007

O BAIRRISMO EM CABO VERDE – ILHA DE SANTIAGO VS ILHA DE S.VICENTE: “UMA RESENHA” *

Tendo por objecto de pesquisa, diferenças identitárias de Santiago e São Vicente – ilhas do arquipélago de Cabo Verde –, no processo regional, pretendi aprofundar e analisar os factores associados ao problema da existência de manifestações bairristas neste arquipélago, em particular nestas duas regiões insulares.

Ao longo da história, as manifestações bairristas parecem ter acompanhado os aspectos mais marcantes da formação da sociedade cabo-verdiana. São estes aspectos associados ao problema do bairrismo que procurei estudar bem como determinar as suas especificidades.

Pretendo analisar a situação da Praia (a capital da Ilha de Santiago e o seu interior) e do Mindelo (cidade da Ilha de São Vicente) num quadro mais amplo, em relação às outras ilhas que compõem o arquipélago [tentando articular as mesmas com as que pretendi estudar], na produção da identidade cabo-verdiana, onde esta é marcada, especialmente pela condição da insularidade.

Parece-me que são nestas duas ilhas, mais do que nas outras ilhas, que se materializam manifestações bairristas intergrupais. Mas é de ressalvar que se tem verificado um maior número de informações sobre a história da formação das restantes sete ilhas[1], no seu “modus vivendi”, no seu modo de agir com os seus constrangimentos e com as suas potencialidades.

A cidade da Praia, na ilha de Santiago e capital de Cabo Verde, é um fenómeno de explosão urbana e macrocefalia, reunindo uma grande parte da população cabo-verdiana e assim, uma concentração humana que requer um estudo cuidado.É também uma ilha agrícola favorecida, quando existem quedas pluviométricas, de ribeiras que permitem a produção agrícola no seu interior. Até certa altura, foi uma das únicas ilhas que permitia a fixação de população junto aos locais com maiores potencialidades agrícolas. Eram nessas “ribeiras que se começaram a formar pólos de concentração demográfica”[2] e estrategicamente “ as igrejas vão instalar-se nas ribeiras ou nas suas imediações atraídas por maiores densidades populacionais”[3].

A cidade do Mindelo, em São Vicente, um centro urbano menos favorecido em termos de recursos naturais (praticamente não existe agricultura de produção), mas que até certa altura conseguiu manter uma importância singular, como ponto importante de comunicação internacional pelo seu Porto Grande, mantém, até hoje, uma importância cultural pelo estabelecimento na cidade do primeiro Liceu de Cabo Verde.

Através de um quadro hipotético, tentei compreender em que situações o bairrismo se materializa; verificar se o bairrismo tem efeitos positivos – isto é, se se traduz no incremento do desenvolvimento regional em Cabo Verde, ou se tem efeitos negativos e determinar quais são.

I. O PROBLEMA

O problema que propus trabalhar O Bairrismo em Cabo Verde decorre de uma linha de pesquisa, essencialmente exploratória, iniciada desde o fim do curso de Sociologia, sobre a existência ou não de bairrismo neste arquipélago.

No trabalho procurei, analisar as especificidades que estarão associadas ao problema da existência de bairrismo em Cabo Verde, através de um caminho, mais completo e portanto, mais aprofundado, sabendo que é um trabalho em aberto, como todo o trabalho de construção científica. Pretendi sim, criar um leque de indicadores que demonstrassem o problema, através das fontes de que disponho, quer a nível teórico, quer empírico, e que possam sustentar os factos que tentarei demonstrar.

Escolhi este tema por duas razões principais. Por um lado, procurei estudar o problema do bairrismo em Cabo Verde existente na vivência quotidiana deste arquipélago, por não ter merecido, em termos académicos, qualquer tipo de trabalho de investigação.

A outra razão prende-se com um percurso biográfico construído com base em várias mudanças do contexto social, o que consequentemente é traduzido por um sentimento pouco sólido de pertença a uma pátria, a uma localidade ou a um bairro.

Todavia, na sua maioria, foram as referências cabo-verdianas que mais marcaram este percurso, através das vivências, das relações sociais cabo-verdianas e dos espaços vividos, que me proporcionou, em particular, conhecer relativamente bem a diáspora cabo-verdiana em Portugal, pelo tempo de permanência neste país, e no geral, a realidade de Cabo Verde, sempre atenta ao que se passa naqueles “dez grãozinhos de terra” no “cantar” de Cesária Évora, talvez por um sentimento a que este arquipélago espontaneamente “obriga” a conservar que é reunido de forma muito própria e expressiva na palavra morabeza[4], e, talvez porque permitiu-me um desafio na escolha da própria identidade.

O trabalho, para além de cientifico, tem um significado de carácter simbólico. É o contributo possível à minha terra natal, pois que é com muito orgulho que me sinto cabo-verdiana. Pelo facto, de ser privilegiada ao ter uma formação académica, focalizei, nesse sentido, todos os meus esforços para apoiar e melhorar, [dentro das minhas possibilidades], o futuro de Cabo Verde.

O problema do bairrismo em Cabo Verde, parece-me ambíguo, pois que, se esporadicamente, faz parte de discursos, sobretudo políticos e parece estar mais acesso em alturas de maiores fluxos migratórios, ao mesmo tempo, é “esquecido” ou melhor, “camuflado”, pela maioria da população, talvez por ser um problema delicado, o que leva-nos a crer, tratar-se ainda de um problema “tabú”.

Ao escolher estudar o Bairrismo em Cabo Verde, nomeadamente em Santiago e em São Vicente, tive em conta, uma maior visibilidade na materialização das manifestações bairristas encontradas nestas duas regiões insulares[5].

Portanto, é neste “espaço crioulo” que pretendo estudar estas realidades regionais que “testemunham” o “modus vivendi” de indivíduos, grupos ou organizações, com a sua forma de interagir com os outros, de tal modo que fazem emergir fenómenos como o bairrismo.

Nesta pesquisa tive algumas dificuldades em utilizar o termo ”bairrismo”, pois numa primeira leitura, não me parecia ser este o termo o mais correcto, para a nossa população-alvo – duas ilhas que pertencem a um arquipélago composto por mais oito regiões insulares –. Foi o facto de algumas destas ilhas apresentarem manifestações bairristas, que me levou a optar por enquadrar o termo no trabalho.

É evidente que o termo “bairrismo” estará mais adequado para um caso como “Lisboa – Porto”, que pertencem a um todo espaço nacional muito bem delimitado e circunscrito em regiões, ao contrário do que se passa com Cabo Verde, um arquipélago, que é um espaço geograficamente delimitado, um pedaço de terra cercado de mar por todos os lados e composto por dez ilhas, umas mais próximas, outras mais distantes das restantes[6].

Mais relevante do que a terminologia que utilizei para intitular o problema que trabalhei, será fazer uma ligeira abordagem, sobre a etimologia da palavra “bairrismo”, pois que, senti ao pesquisar o termo, que o mesmo tem ainda, pouca expressão nesta área, e que traz como consequências o seu uso de forma “ilimitada”. Procurei também nesta breve pesquisa as várias terminologias em países onde o nacionalismo teve um impacto muito forte.

Antes de mais, no senso comum, “bairrismo” é, o modo como se relacionam tipos de grupos, traduzido em situações de conflitos, disputas, divergências ou competições, que podem surtir efeitos positivos ou negativos.

“Bairrismo” advém de “bairro”, que é cada uma das partes em que se costuma dividir uma cidade ou vila, para mais precisa orientação e mais fácil controlo administrativo dos serviços públicos[7].

O ”bairrista” é em português a pessoa aferrada à sua terra[8]; aferro ou defensor dos interesses do seu bairro ou da sua terra; diz-se das pessoas que levadas por uma visão estreita do patriotismo, só consideram como sua pátria o estado natal e hostilizam ou menosprezam tudo quanto se refere aos demais.

Em inglês é o “defender of the interests of one’s own parish, district or quartier”/“joinstick” (juntos em altura de guerra); “parochialism/parochial outlook; tendency to uphold one’s own district or quartier”[9].

Em francês é o”l’habitant d’un quartier/défenseur des intérets de son quartier ou de son pays”[10]; “chauvinisme” – amor doentio pela pátria; “querelle de quartiers” – bairrismo na vertente urbana; “querelle de clocher”- bairrismo na vertente rural -, que corresponde em português a campanário – igreja, torre com sinos; freguesia: aos “interesses locais” (aproxima-se a paróquia).

O campanário existe desde a Idade Média e foi retomado no século XIX, sobretudo na Europa que lutava pelo nacionalismo.

Em alemão bairrismo significa, patriotismo local (“lokalpatriotimus)[11].

(também um amor aferrado à pátria).

Em espanhol o mesmo termo significa “localismo” (amor negativo pelo local)[12].

Em italiano, bairrismo significa “campanilo” (que se aproxima do português campanário)[13].

Em suma, dos países que escolhi, onde a luta pelo nacionalismo foi fortemente marcada, o termo etimológico – “bairrismo” – aparece com uma conotação negativa, em geral, o que não é de admirar pela maneira como foi conduzido todo o processo nacionalista.

Por outro lado, a leitura do mesmo termo, sugere igualmente particularismos como a prioridade dada “aos interesses locais”, ministrado pela paróquia/freguesia, que até à data é bastante visível, em pequenas localidades, aldeias (meio rural) e bairros.

É nessa perspectiva que estudei o bairrismo em Cabo Verde, suportado numa região ou numa comunidade, e como tal tem a tendência de rejeitando a diferença do outro, tomar o seu modo de ser, sentir, estar, como o melhor, porque este fenómeno partilha da ideia regional ou comunitária, de que os outros têm em menor quantidade e qualidade.

Quero ainda salientar que importa abordar a questão do “racismo”, para melhor entendimento que bairrismo e racismo não são a mesma coisa, embora, por vezes se possam aproximar e até confundirem-se.

Nesta linha de pensamento e apoiando-me de novo na análise etimológica, “racismo” é definido como “superioridade de certas raças e assenta na alegada superioridade do direito de dominar ou mesmo suprimir as outras”[14].

A palavra “raça” é datada do século XV e vem do latim “ratio”, o que significa, “ordem cronológica”, este sentido lógico, segundo Albert Memmi[15] “ persiste na acepção biológica que se impõe pelo seguinte, a raça é então, compreendida como um conjunto de traços biológicos e psicológicos que liga ascendentes e descendentes numa mesma linhagem”.

Segundo o autor, o “racismo” como doutrina aparece depois, no século XVI com o “esforço sistemático para justificar a agressão e a dominação sobre um grupo apresentado como biologicamente inferior por outro grupo julgado superior”[16].

O significado etimológico da palavra “racismo” é o próprio significado biológico, é “uma teoria de exclusão necessária das raças diferentes, portanto inferiores, porque diferentes da “raça” do racista”[17].

Este autor recomenda que esta palavra, não seja utilizada quando se trata de outras circunstâncias diferentes de “raça”.

Sustentada por esta breve resenha etimológica sobre o termo “bairrismo” e “racismo”, e partilhando da mesma preocupação de Albert Memmi, tentarei ao longo do trabalho, deixar esta questão o mais evidente possível, mas tendo em conta, que poderão existir situações pontuais, em que estes dois termos (“bairrismo”/”racismo”) se aproximem, emergentes da própria História de Cabo Verde.

Num primeiro ponto, procurei fundamentar conceitos que melhor suportam o tema. Assim, o conceito teórico de identidade, é prioritário, pois suportará o enquadramento sociológico e psico-social do processo da formação da identidade nacional cabo-verdiana, particularmente de Santiago e de São Vicente, esperando obter, deste modo, fontes de diferenciação entre estas duas regiões, que pretendemos igualmente demonstrar empiricamente em páginas posteriores, como formas de validação do nosso problema.

Também será pertinente, analisar o conceito da região.

Procurei beneficiar, em breves linhas, a região na sua vertente histórica, por ser um termo relativamente recente no arquipélago de Cabo Verde.

Nas últimas três décadas, a noção e o fenómeno de região e de regionalismo solicitaram uma exaustiva fonte de pesquisa e teoria. Segundo Perry Anderson[18] “se quisermos desenvolver o termo, o ponto principal e necessário parece passar por fazer uma reflexão sobre o termo “região” per si”, com a intenção de contribuir para a abordagem de algumas condições possíveis do moderno fenómeno “regional”.

O termo “região” é antigo em todas as línguas europeias, com uma maioria mundial do latim, o que se tornou tipicamente usual no século XIV, chegando depois a ser utilizado em outros idiomas não-latinos.

O seu significado tem dois sentidos, segundo P.Anderson[19] “indica por um lado a demarcação de um território geográfico, e por outro, uma porção ou subdivisão alargada”. A origem menos ambígua do termo “região” – província – em latim, designa um território que é concorrido pela cidade-capital.

A melhor forma de exaltar o provincialismo foi, talvez o último termo utilizado na política literária europeia. A razão é clara, desde o princípio a “região” tinha uma segunda conotação. Províncias existiam não só como uma divisão do reino, como oposição da capital – como periferia rústica/bucólica de um centro urbanístico.

Foi com efeito com o declínio da nação tradicional de “província” que beneficiou a ideia moderna de “região”.

Bourdieu[20] argumenta que o discurso regional é a quinta-essência performativa e que pode ser aceite se não atribuirmos “poderes mágicos” à linguagem mas pensarmos no interesse material que dará, a prazo, sentido às periferias administrativas.

Concordo com a perspectiva deste autor, pois, o ideal do problema do bairrismo cabo-verdiano, seria que ele fosse um caminho, para o desenvolvimento regional no conjunto do arquipélago.

Estou consciente também que somente em certos países da Europa onde os governantes “selaram” a democracia, – mais antigos que Portugal ou Grécia – é já suficientemente sólida a regionalização. Ou seja, apenas em países em que a democracia está bem solidificada, as regionalizações estão, por sua vez, avançadas e bem visíveis.

Para mim, trabalhar a génese histórica da configuração psico-social e demográfica cabo-verdiana representada de forma diferente no objecto de estudo, só faz sentido se no nosso conjunto tivermos em linha de conta a formação da identidade nacional do arquipélago, em particular nas duas regiões que estudo, que materializam a maneira de ser destes grupos actuantes no seio de vários focos identitários regionais, que emergem das características insulares, a que um arquipélago está sujeito e que Cabo Verde não está isento.

Em resumo, esta abordagem abre caminho para estudar as relações sociais nestas duas regiões em contextos diferentes quer histórico, psico-social e demográfico, circunscrevendo nestas relações sociais, as manifestações bairristas, enquadradas pelos conceitos capitalizados e supra-mencionados, que se analisa teoricamente e empiricamente.

A minha intenção foi encontrar esta (s) resposta (s) no decorrer do trabalho.

Não descuro, que, por exclusão de hipóteses, o fenómeno do bairrismo, seja um factor determinante ou condicionante na vida quotidiana da sociedade cabo-verdiana, pretendo, sim, que este trabalho sirva de subsídio para explicar, certos comportamentos intergrupais, certas atitudes do povo cabo-verdiano, [emigrante ou não], no geral, e, em particular, nas duas regiões insulares em estudo, onde é manifesto o bairrismo, especialmente em situações ligadas ao poder político; ou quando há maiores fluxos migratórios ou ainda em situações onde os recursos materiais são escassos como é o caso do nosso arquipélago.

É este o problema geral na elaboração da tese de dissertação (2002), fonte para elaborar um artigo.

* Trata-se realmente de uma "Resenha" da minha Tese de Dissertação de Mestrado, (mais de uma centana de páginas) a publicar.

[1] A Ilha de Santa Luzia é desabitada.
[2] SILVA. António Leão C., “Histórias de um sahel insular”, Spleen Edições, 1996, pág 163.
[3] Idem, pág. 164.
[4] Palavra oriunda do crioulo de tradução difícil, mas que tenta exprimir a hospitalidade do Homem cabo verdeano, [mesmo sendo um povo que sofre muito, sobretudo com as secas e daí sem recursos naturais, muitos deles vivem no limiar da pobreza] – existe um ambiente de simplicidade e tranquilidade, que é fonte de inspiração para muitos artistas.
[5] Não descurando as outras ilhas que formam o conjunto do arquipélago de Cabo Verde, com mais oito ilhas, uma delas desabitada. Este assunto será retomado num ponto mais à frente.
[6] Embora estas características insulares já tenham revelado muito mais aspectos de isolamento, pelo difícil relevo que a distância-tempo e a distância-custo não deixavam de constituir obstáculos para a circulação dos bens e dos homens, nota-se ainda que os recursos não são distribuídos de igual modo entre as ilhas , pelo que as capacidades de certas ilhas ainda são frágeis, ao contrário de outras ilhas. Daí que para nós, como supra-mencionado a solução passaria por abrir caminho em prol do desenvolvimento regiona para as nove ilhas (dez com Santa Luzia, que é desabitada). Tentaremos compreender se é possível esta solução ou não, no decorrer do nosso trabalho, ou se ainda há muito por fazer at
[7] Dicionário Aurélio.
[8] Dicionário Lello Português
[9] Dicionário Português-Inglês
[10] Dicionário Português- Francês
[11] Dicionário Português- Alemão
[12] Dicionário Português- Espanhol
[13] Dicionário Português- Italiano
[14] Dicionário de Língua Portuguesa
[15] MEMMI, Albert, “O Racismo”, Editorial caminho, S.A., lisboa, 1993, pág. 110.
[16] Idem, pág. 110.
[17] Ibidem, pág. 155.
[18] ANDERSON, Perry, “The invention of the region” (1945-1990), European University Institute, Florence, 1994, pág 5
[19] idem, pág.

1 comentário:

Anónimo disse...

Cara Elsa, estou estudando o Bairrismo no Brasil e minha monografia será baseada em conceitos econômicos a cerca do bairrismo. É possível que me envies a sua tese de mestrado para que eu coloque como referência bibliográfica em meu trabalho? Agradeço pela sua resposta...